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31 de janeiro de 2018

31 de janeiro de 2018 por Maria do Céu Barros comentários

Por Maria Isabel Frescata Montargil

Conhecia-a numa gaveta de um toucador, na minha infância. Não há muitos anos procurei o seu retrato … Perdera-se!
Num aniversário meu, por Janeiro, dediquei-lhe um pequeno texto (aquele cujos excertos agora partilho). Mas o retrato …
Esta foto é idêntica à que eu vira. Tinha sido oferecida a familiares, numa quinta que eu conhecera já abandonada. Tinham falecido… A empregada da casa guardou a fotografia, oferecendo-a a uma sobrinha, já idosa. Esta, por sua vez, porque sentiu que a vida lhe fugia, ofereceu-a a um primo meu, sabendo-o pessoa de família. Que então me ofertou uma reprodução …
(Tinha tentado entretanto conseguir fotocópia do seu assento de nascimento. Sem sucesso ... parecia maldição!)
Oferta "casualmente" (?...) chegada em novo aniversário meu …Tinham passado dois anos sobre o texto . Cerca de cem desde que a foto tinha sido tirada! 
Recordava-a bem! Era …
“ Uma menina.
Uma outra menina. Mais ou menos da sua idade. Uns seis anos, quando muito sete. Com os cabelos pelos ombros, risca ao lado e um travessão estreito a prendê-los. Lábios finos na boca pequena, fechada e firme. Muito séria. E aquele olhar imenso, de quem quer abarcar o mundo e os outros e não pode. Porque não pertencia ao mundo e os outros também não lhe pertenciam.


E fitavam-na muito fixamente aqueles enormes e muito claros olhos – diziam que verdes, porque ali eram em cinza. Toda a menina era em tons cinza esmaecida, quase sépia. A menina que vivia na gaveta era um retrato.
A dona da casa segurava-a com cuidado, mergulhava naquele olhar e ficava como que náufraga, como que perdida. Por tempos sem fim. Com a voz ferida, ia dizendo baixinho:
“- Se ao menos ela tivesse vivido poderia ser hoje minha amiga, quem sabe…Talvez pudesse desabafar com ela. Talvez me sentisse menos só …”.
“Ela” era a irmã que a dona da casa nunca tinha conhecido. Morrera muito antes do seu nascimento. Aos sete anos, com uma doença num braço, doença de estranho nome. Dela restara só aquela fotografia de uma menina diferente. E a lembrança a diluir-se.
….
Cheia de pena via a outra menina da sua idade. A “tia Maria”. Uma tia criança, em tons cinza-sépia e perpétua meninice. Fitou-lhe mais uma vez o rosto. Rosto cujo olhar levaria para sempre no seu.
….

Num dia frio de Outono procurou-a noutro lugar. Dia de Finados. Muitos anos mais tarde. A sua mãe partira também. Definitivamente. Era agora estudante e ainda jovem.. Não a encontrou; apenas um quase-berço de terra-chã, terra-mãe, rodeado por grades meio ferrugentas. Mais altas na cabeceira, como um pequeno altar. Numa pequena cama.
E dos ramos de flores que trazia, fez-lhe uma colcha de Primavera. Em florzinhas amarelas, brancas, rosa-vivo. Para a compensar daquele olhar a dissolver-se em cinzento-sépia e que um dia tinha sido verde como a Esperança.
Talvez que com aquela colcha ela regressasse depois do Inverno, como Perséfone. E colhesse as papoilas que não longe dali cresceriam. Mas ela não regressou, nem sequer à memória dos seus. 
Apenas à da sobrinha-menina da sua idade, talvez mais sua irmã que a mãe da menina. 
Crescera entretanto. Seria mãe. Colheria papoilas na Primavera e no Outono comeria grãos de romã. O ciclo continuaria. 
Mas no Outono da sua própria vida – a acinzentar-se – lembraria a Primavera no olhar da menina do retrato.
Inutilmente.


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